![]() 03/07/2012 15h15
UM VAPOR, UM RIO E UMA SAUDADE
Mais adiante avistei o solitário vapor Pery. Ele me viu e feliz, bocejando, acenou para mim. Mecanicamente acenei também. Cheguei, como quem não quer nada, e me postei encostado nele como puta velha buscando soluções para coisas impossíveis e insolúveis. - Oi! Velho camarada, disse a ele batendo várias vezes com a palma da mão no seu casco. - Oi, respondeu-me ele parecendo um pouco triste e saudoso. - O que acontece? Algum problema? Sempre o vi alegre e esperançoso? Ele suspirou, num suspirar de imensa tristeza e como se estivesse num divã desfiou suas mágoas em torrentes sem fim. O Pery estava ali, preso, estaleirado como um corpo inerte numa cirurgia completa de restauro. De onde ele estava tinha uma visão privilegiada do rio, e por isto, perdia-se em tantas ferrugens almejando desesperadamente o singrar por aquelas águas como dantes navegara. Tinha esperança e, de qualquer forma, isto alentava a sua vida metal. - Há tempo não vejo meus amigos vapores Leão, Paraná, Iguassu, Sara, Vitória e tantos outros! O que é feito deles? Perguntou-me em voz rouca. Bateu-me a saudade e uma imensa tristeza invadiu minha alma. Pensei um pouco e disse que estavam felizes aguardando a volta dele nas águas do rio. Foi para ele uma gota de alento esta informação. Contou-me da alegria quando, rio acima ou rio abaixo, cruzava com seus amigos. O silvo rouco, a chaminé soltando fumaça e fagulhas era o conversar deles na solidão do rio, que feito uma serpente, com suas águas deslizando transparentes e lépidas lambendo sôfregas as margens que as continham. Ele, numa voz quase sumida, contou-me dos lenços brancos nas mãos dos passageiros ao cruzar das embarcações. Subi até ao convés para melhor conversar com ele. Para não desanimá-lo completei dizendo que os amigos dele estavam também sendo preparados para a grande festa da volta. A certeza que todos tinham é de que sem tardança aquelas águas novamente estariam felizes acolhendo todos os barcos e vapores; E no vai e vem das ondas espumantes provocadas pelas rodas d’água, transportariam felizes mercadorias e pessoas. Seria tudo como dantes. Ele sorriu! Fui até a proa, passei a mão nela, e sentado por alguns momentos olhei o rio que se perdia numa curva mais adiante. Olhei demoradamente, e colocando-me no lugar dele pude perceber a angustia que meu querido vapor passava, estaleirado ali, e tanto tempo sem o contato com as águas. O gigante estava no ancoradouro, quase inútil preso, um tanto carcomido pela ferrugem, sendo aos poucos restaurado, apenas para servir de deleite para alguns curiosos que se postarão junto a ele para fotos futuras de recordação. A condenação para a inutilidade do Pery estava numa situação irreversível. Ninguém tinha mais paciência para estas viagens de prolongado tempo, e o rio maculado pela imundície e de leito aterrado pelo areal não se prestaria para qualquer tipo de navegação. E o pobre Pery isolado, triste desconhecia tudo isto. Estava ali, tal qual um moribundo que lhe escondem a doença, acreditando que ainda navegará pelo rio Iguaçu. E continuei meu conversar. Lembrei com ele a beleza e o encantamento da procissão de Nossa Senhora dos Navegantes. O Rio ficava apinhado de barcos e vapores enfeitados que deslizavam graciosos pelas águas do rio. Sumiam na curva da nascente e apareciam logo mais para o delírio, com palmas e vivas, gritadas pelo povo que se aglomerava na margem direita, na entrada do porto. Lembramos dos momentos festivos, e o burburinho buliçoso do povo no embarque e desembarque. Da retirada das entranhas dos vapores as mercadorias, e da cena bucólica das senhoras de vestidos longos e chapéus enfeitados e de seus homens em terno e gravata. A chegada do vapor no porto, anunciada pelo seu silvo rouco, era motivo de festa. A população se enfeitava, e feito criança descia para ver, para saber, para fofocar, e para participar. Ele riu um pouco do jeito dele, matutou por alguns segundos e perguntou depois de um longo suspiro: - Você acredita mesmo que eu posso novamente singrar todos estas milhas de água novamente? O sol já aparecia despertando as borboletas, os entregadores de pão, as fofoqueiras de plantão e tantos outros viventes. O campanário lá mais para o alto tocou o sino do nascer do dia. Não respondi. Apenas fiquei olhando condoído para aquele gigante e confesso que vi lágrimas em profusão nas suas feições. Mudei de direção o meu lacrimejado olhar e olhei saudoso para aquele rio podre, lodoso; Muitas lembranças boas me vieram; Voltei-me então para o Pery, e mais uma vez contemplei condoído o vapor enferrujado; E para não chorar com ele, afastei-me dali no meu passo mole, de um passar incerto que me levou para a realidade nua e crua que me vestia do agora cruelmente. Publicado por Mario dos Santos Lima em 03/07/2012 às 15h15
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