06/10/2012 22h32
O PREÇO DE UMA AULA
Fazendo a analogia do aluno com a matéria prima, eu diria que se no processo de fabricação o produto estiver sendo prejudicado, na sua qualidade, na sua funcionalidade pela porcaria da matéria prima, é dever do gestor eliminar este material para que o produto se apresente a contento lá na ponta de venda. Ou por outro lado, se fizer a analogia do aluno com cliente num processo de compra e venda, e o pretenso cliente não estiver comprando, apenas enxovalhando o produto, este maldito cliente deverá ser descartado. Eu diria que isto nem considero como meu ponto de vista uma vez que é simplesmente a lógica do negócio. A maça podre deve ser eliminada. Bem, eu sou pelo valor intrínseco das coisas, pela ética e pelos bons costumes. Para mim, o aluno deveria vir de boa formação e conduta de berço. Com estes valores sedimentados em casa, ao freqüentar uma escola com o objetivo explícito de conviver, buscar, pela experiência dos mestres, os saberes e práticas para sua vida, estaria apto e preparado adequadamente para servir a sociedade. É isto que acontece? Diria, com raras exceções. O professor é desrespeitado, é enxovalhado, e sempre é considerado um velho que deveria estar aposentado. É ameaçado e muitas vezes vítima de violência. O professor além de não ser valorizado pela grande maioria dos alunos, ele também recebe pouco apoio da instituição em que leciona. É um bucha de canhão. É a bolinha de pingue pongue no vai e vem da vontade das duas partes – alunos e instituição. O professor se amedronta? Acovarda-se? Não, segue convencido, firme, alinhado no seu ideal quase utópico de transformar uma massa sem princípios, sem ética, sem civilidade numa obra prima. Consegue? Por alguns exemplos soltos por aí, acredita-se que sim. Sempre vão existir mestres corajosos e idealistas. Muitas vezes a educação que faltou em casa é necessária corrigi-la em sala de aula. Não que isso seja uma regra, mas muitas vezes a matéria prima pode ser recuperada no processo de transformação. Foi numa atitude corajosa de enfrentamento que um professor – digo aqui o pecado, mas não conto nem quem foi o pecador e nem quem foi o padre. – resolveu, de forma brilhante, dar uma lição num fedelho, mal educado, mau caráter que assistia a sua aula. O fedelho chegou tarde, não se ligou nas explicações e de repente, para perturbar a aula resolveu questionar: - Poderia explicar tudo de novo? Não estou entendendo nada! O professor até aqui calmamente, tendo acompanhado a displicência do criançola mal educada, resolveu interpor dizendo: - A dúvida é a incerteza ou desconfiança em relação a uma idéia, um fato, uma ação, de uma asserção ou de uma decisão, assim, você poderia dizer para mim e para a sala do que estou realmente tratando e onde reina a sua dúvida? O desconexado, de dedo em riste querendo se sair bem da enrascada perante a sala vomita: - Seu babaca, eu pago pelas suas aulas e por isto você tem que explicar as coisas quantas vezes eu quiser! A sala gelou. Ouvia-se o bater das asas das moscas. O professor, sem se alterar, quase como desconhecendo os impropérios ditos pelo mal criado, abriu sua bolsa, sacou uma máquina de calcular e por alguns minutos seus dedos passearam pelo teclado numa dança nervosa e feroz. - Muito bem! Diz o professor já num tom mais de tenor cantando duas oitavas acima. - Você comprava a minha aula! A partir de agora não vendo mais para você. Tirou do bolso duas moedas, dirigiu-se até a carteira do mal criado fedelho, e bateu-as no tampo da mesa e vociferou, apontando para a porta - Está aqui o que você pagou, pode se retirar! A sala em suspense assistiu a cena. O topetudo saiu dizendo: - Você não sabe com quem está se metendo! O desgraçado estava saindo sem as moedas, o professor pegou-as e entregou-as respondendo: - Sei sim com que estou falando! Estou falando com um tremendo mal criado, um desajustado que não teve ou não soube aproveitar a educação que seus pais lhe deram, um egoísta desajustado! O aluno saiu batendo a porta e a sala aplaudiu o professor. O desfecho foi melhor. O desgovernado, pensando ser o senhor da situação tentou entrar em sala de aula algumas vezes, mas recebia, implacavelmente já na porta os centavos. Contou uma história qualquer em casa e os pais vieram furibundos a fim de tirar satisfação com o mestre. Reunião tensa na direção. O monstro, seus pais e colegas de sala. Tornando-se mais plácido, o professor olhando para os pais sentenciou: - Eu aceito o retorno de seu filho desde que ele vá agora, frente à sala de aula, e se retrate. Os pais concordaram, inclusive acompanhando o desgovernado até a sala de aula. A atitude do calhorda serviu para os demais colegas reconhecer a grandiosidade do professor nos míseros centavos que pagam a ele.
Nota para reflexão: Visto que a maioria das Instituições pensa muito mais no faturamento que em adicionar conhecimentos, modelar a massa, será que algum professor teria coragem e peito para agir desta forma? E se agir? Qual seria o final da novela? Publicado por Mario dos Santos Lima em 06/10/2012 às 22h32
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. 12/07/2012 00h04
RÚSTICO
O sol descambando no horizonte atropelava algumas nuvens, e pintava o céu num tom escarlate que ia morrer num amarelo desbotado. As aves em revoada, como que respingando de negro a tela do infinito, buscavam afoitas seus galhos aqui e acolá. O caboclo puxou a última enxadada, descurvou-se, arredou um pouco para trás seu chapéu de palha e com a manga de sua camisa desbotada enxugou o suor que marejava em seu rosto da mormaceira do dia. Olhou absorto, por um largo tempo, aquele cenário da natureza, sorriu, fechou os olhos e fazendo um sinal da cruz agradeceu ao Criador pelo dia de trabalho e pela lindeza do entardecer. Pegou o embornal com a marmita que sua cabocla tinha preparado, ajeitou a enxada no ombro e pegou o rumo da palhoça. Assobiou uma canção qualquer enquanto caminhava. Suas passadas firmes fincavam marcas na poeira da estrada. Sua casa apareceu, mais adiante, na curva da estrada fazendo parte da pintura daquele morrer de dia. Era uma cena bucólica: - o caboclo na estrada e sua cabana mais alem ao entardecer Enquanto se aproximava foi admirando a paisagem detalhadamente, como se tivesse degustando um vinho precioso. Tudo para ele era belo, um sonho encantado. Olhava feliz para os dois coqueiros que envergados pelo vento pareciam reverenciar a sua casa. Olhava os canteiros floridos que faziam o contorno de sua casa. A fumaça que saia da chaminé, e se perdia bêbada pela amplidão, anunciava que dentro daquela casa tinha alguém que o esperava. Olhou e sorriu. Notou mais adiante, no sitio visinho que os bois em fila se recolhiam aos currais. O mundão para ele era tudo aquilo, nada mais desejava, nada mais lhe faltava. Tudo era mansidão e paz e ele sentia-se o homem mais feliz do mundo. Quando já perto chegava, uma criança abriu a porta e de braços abertos, passou correndo pelo semi aberto portão seguida pelo seu guapeca. Vinha feliz, gritando em sua direção, anunciando: - Mamãe, mamãe o papai ta chegando! O caboclo contente, também de braços abertos, se ajoelhou para ficar na mesma altura e esperou pelo abraço gostoso que chegava de seu filho. O cachorro de rabo abanando permaneceu ladrando a sua volta, Na porta da palhoça a cabocla, de avental, sorrindo viu se repetir, de tantas, mais uma vez, esta linda cena. Num abraço apertado os dois permaneceram, pai e filho, por algum momento em silêncio como se fosse o regresso de uma longa ausência. O cachorro então, parecendo entender, apenas gania baixinho. O caboclo levantou-se, pegando no colo seu filho, que em mil perguntas queria saber tudo o que aconteceu com o pai naquele dia. Passou a mão calejada na cabeça do pulguento e rumou para casa. Na soleira da porta abraçou sua cabocla. A casa era singela de paredes e assoalho em madeira lavrada coberta de sapé. Uma mesa tosca, com quatro cadeiras em palhinha, era a mobília mais importante presente que fora dado por um compadre seu. Na parede, assentado numa cantoneira, um rádio antigo, valvulado tocado a bateria era a única modernidade daquela família. Um quadro antigo da sagrada família estava pendurado na outra parede abençoando o ambiente. Um lampião a querosene deixava rastros de fumaça na parede onde estava pendurado. O quarto era contiguo a cozinha onde acomodava o casal e seu filho nas camas toscas coberta de colchão de palha de milho. A lata de água no fogão a lenha de taipa para o banho já estava quase borbulhando. As panelas de ferro já anunciavam que o jantar logo estaria pronto. Pegou o machado atrás da porta, verificou o fio e foi cortar um pouco mais de lenha. Empilhou-a no puxado ao lado do poço. Com o sarilho tirou alguns baldes d’água enchendo a tina que estava dentro da cozinha. Conferiu as galinhas no galinheiro fechando-o cautelosamente. Deu uma rápida olhada no leitão que engordava no chiqueiro, quando então, escutou a voz de sua cabocla: - A água já tá quente, amor! Anunciou ela; A noite já se apresentava vestida de estrelas no brilho do luar que se perdia na amplidão. O caboclo entrou, acendeu o lampião da cozinha e levou a lamparina para o lugar do banho. Desceu na roldana o balde de chuveiro, colocou a água fria e em seguida a água quente dosando a temperatura; Ergueu-o na altura adequada, amarrando a corda num prego de caibro que se encontrava cravado na parede. O caboclo sentou-se à mesa, e em seguida seu filho. A cabocla carinhosamente serviu o jantar e sentou-se também. Na mesa o feijão, o arroz, a farinha de mandioca e o frango tudo do processo do próprio sítio. Um breve silêncio, e a voz de barítono do caboclo elevou-se em oração de bênçãos, e agradecimento pelas coisas que tinham. Num banco tosco, ao lado de fora recostados na parede os três conversavam tomando banho de luar admirando as estrelas ao som da orquestra da zoina dos mosquitos, dos grunhidos do porco no chiqueiro, do pio das corujas e do muar das vacas nos currais mais distante. Tudo era melodia quando então o caboclo para completar a sinfonia pegou sua viola e começou a cantar uma modinha qualquer. Seu filho, que brincava com o cachorro, sentou no banco ao lado da mãe para se deliciar com as canções de seu pai. Sua toada, na voz melodiosa foi além da cerca, além dos currais, perder-se no horizonte escuro. Quando viu o filho adormecido no regaço da sua cabocla cantou, com alegria e muito amor, sua última canção. Esta música foi como uma oração que ele dedicou ao seu criador antes de se recolher. Apagou-se o lampião. Tudo agora dorme na sinfonia surda do silêncio, apenas o vento, do lado de fora, brinca nos ramos verdes do coqueiro que se curva ainda mais. Publicado por Mario dos Santos Lima em 12/07/2012 às 00h04
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. 04/07/2012 23h36
O GRANDE CIRCO
O circo, segundo a literatura velha, empoeirada e estocada em bibliotecas e também perdida em prateleiras particulares por aí, diz-se dele que é uma empresa itinerante que congrega artistas de diferentes especialidades, tais como malabaristas que faz desaparecer dinheiro, documentos e outras coisas de forma habilidosa; os funâmbulos que vivem na corda bamba, mas não caem; os ilusionistas que enganam o povo com suas habilidades, e principalmente os engraçados palhaços. Ah! Os palhaços como eu gostava e me divertia com eles. Todos estes artistas faziam a graça e a diversão do povo que sentados na arquibancada, em tábuas rústicas ao derredor do picadeiro, aplaudiam e riam à beça. A família, os amigos e os vizinhos estavam juntos. Suas interpretações teatrais não apenas demonstravam interesses individuais e sim despertavam a consciência mútua, sobre o amor, o respeito e a honestidade. Era singelo, mas eficaz. Uma das características do circo era sua lona. De longe a gente avistava-a e se empolgava. Ela exercia um fascínio inexplicável e funcionava tal qual um imã. O circo já fez história por mais de quatro mil anos; Foi praticamente institucionalizado pelos romanos, antes de Cristo, que tinham como política, para conter a insatisfação do povo, pão e circo, e por fim profissionalizado pelos ingleses no século dezoito, e agora?... No meu tempo de guri o circo chegava barulhento na cidade, mas sempre em temporada curta. A petizada curiosa corria e ficava em derredor dele apreciando os animais e vendo, como num passe de mágica, a lona ser erguida. O circo quando se instalava na cidade era assunto sério na pauta de qualquer discussão familiar. - Cuidado com as crianças! Sempre o pai cuidadoso alertava em casa. A lenda era de que o pessoal do circo roubava as crianças e dava de alimento aos animais, mas o certo mesmo é de que a cachorrada vadia da cidade e alguns gatos eram pratos prediletos das onças e outros animais e não as crianças. O circo além da graça que apresentava tinha por função ser o predador natural dos vira-latas e gatos abandonados. Eu tenho saudade dos circos de minha época de meninice. Os donos eram verdadeiros empreendedores e estrategistas. Eles sabiam organizar bons espetáculos, fazer boas propagandas e estabelecer o tempo de permanência no local antes que curva de demanda caísse. Era da bilheteria a renda para sustentar as despesas com alimentação aos bichos, salários aos artistas e manutenção dos fatores de operação. Ninguém ganhava por fora e a platéia concordava com o valor da entrada. O circo foi se transformando para atender as exigências do público e foi, aos poucos, se encolhendo sufocada principalmente pela televisão. Da grandiosidade e importância do circo de antigamente hoje, pequeno e na palidez do desterro luta heroicamente para sobreviver nas mãos de alguns circenses que quase no anonimato, com suas lonas velhas, furadas sustentadas parcamente por ferros enferrujados, se apresentam em cenas bizarras de pouca expressão. São valentes nesta luta inglória. A luta é inglória e por quê? Fazendo uma analogia, o circo hoje é um anão desarmado que se embate contra um gigante fortemente municiado. Quem é este gigante invejoso que veio buscar das lonas o aprendizado e roubar seu público inocente? O gigante tem dois tentáculos – A televisão e os políticos. A lona virou o teto de nossa casa, a arquibancada o nosso sofá, e o picadeiro a tela da televisão. E os ilusionistas, os mágicos, os equilibristas e os palhaços? Ah! Estes graciosos artistas de antanho hoje são vermes que empobrecem nossos anseios e enche de imundície a nossa vida. Deixam aniquilados os cérebros de nossas crianças. São vazios na essência do saber e nos encharcam a alma de banalidades, de imoralidades e desrespeito com nossos ideais. O picadeiro se individualizou e se multiplicou pela casa. Nós nos drogamos lentamente sozinhos. O gigante hoje quer apenas ganhar dinheiro e embrutecer o nosso espírito. A telinha está rica de inutilidades e a lona que vemos em cada cidade, em cada estado e capital do país está cheia de malabares, de mágicos e de palhaços que lá os empregamos com nossos votos. Cada um de nós é o grande circense que tem o poder de colocar estes canalhas que se prestam ao ridículo como vereadores, prefeitos, deputados, senadores e presidente sob a grande lona de seus palácios. Eles nos representam? Desta forma, nós é que somos os palhaços, travestidos nestes velhacos, rindo da própria desgraça no grande circo que instalamos. O circo se institucionalizou. Publicado por Mario dos Santos Lima em 04/07/2012 às 23h36
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. 03/07/2012 15h15
UM VAPOR, UM RIO E UMA SAUDADE
Era uma daquelas madrugadas fria, final de primavera. As flores em profusão, respingadas do suor da serração, ainda em êxtase, exalavam mil perfumes pelo ar. As borboletas ainda dormiam embriagadas ou dopadas pelo néctar roubado nos jardins. Tudo era maravilhosamente deserto em descanso profundo, e assim, maculando este cenário, caminhava eu a esmo no ritmo da dança das recordações. Mais adiante avistei o solitário vapor Pery. Ele me viu e feliz, bocejando, acenou para mim. Mecanicamente acenei também. Cheguei, como quem não quer nada, e me postei encostado nele como puta velha buscando soluções para coisas impossíveis e insolúveis. - Oi! Velho camarada, disse a ele batendo várias vezes com a palma da mão no seu casco. - Oi, respondeu-me ele parecendo um pouco triste e saudoso. - O que acontece? Algum problema? Sempre o vi alegre e esperançoso? Ele suspirou, num suspirar de imensa tristeza e como se estivesse num divã desfiou suas mágoas em torrentes sem fim. O Pery estava ali, preso, estaleirado como um corpo inerte numa cirurgia completa de restauro. De onde ele estava tinha uma visão privilegiada do rio, e por isto, perdia-se em tantas ferrugens almejando desesperadamente o singrar por aquelas águas como dantes navegara. Tinha esperança e, de qualquer forma, isto alentava a sua vida metal. - Há tempo não vejo meus amigos vapores Leão, Paraná, Iguassu, Sara, Vitória e tantos outros! O que é feito deles? Perguntou-me em voz rouca. Bateu-me a saudade e uma imensa tristeza invadiu minha alma. Pensei um pouco e disse que estavam felizes aguardando a volta dele nas águas do rio. Foi para ele uma gota de alento esta informação. Contou-me da alegria quando, rio acima ou rio abaixo, cruzava com seus amigos. O silvo rouco, a chaminé soltando fumaça e fagulhas era o conversar deles na solidão do rio, que feito uma serpente, com suas águas deslizando transparentes e lépidas lambendo sôfregas as margens que as continham. Ele, numa voz quase sumida, contou-me dos lenços brancos nas mãos dos passageiros ao cruzar das embarcações. Subi até ao convés para melhor conversar com ele. Para não desanimá-lo completei dizendo que os amigos dele estavam também sendo preparados para a grande festa da volta. A certeza que todos tinham é de que sem tardança aquelas águas novamente estariam felizes acolhendo todos os barcos e vapores; E no vai e vem das ondas espumantes provocadas pelas rodas d’água, transportariam felizes mercadorias e pessoas. Seria tudo como dantes. Ele sorriu! Fui até a proa, passei a mão nela, e sentado por alguns momentos olhei o rio que se perdia numa curva mais adiante. Olhei demoradamente, e colocando-me no lugar dele pude perceber a angustia que meu querido vapor passava, estaleirado ali, e tanto tempo sem o contato com as águas. O gigante estava no ancoradouro, quase inútil preso, um tanto carcomido pela ferrugem, sendo aos poucos restaurado, apenas para servir de deleite para alguns curiosos que se postarão junto a ele para fotos futuras de recordação. A condenação para a inutilidade do Pery estava numa situação irreversível. Ninguém tinha mais paciência para estas viagens de prolongado tempo, e o rio maculado pela imundície e de leito aterrado pelo areal não se prestaria para qualquer tipo de navegação. E o pobre Pery isolado, triste desconhecia tudo isto. Estava ali, tal qual um moribundo que lhe escondem a doença, acreditando que ainda navegará pelo rio Iguaçu. E continuei meu conversar. Lembrei com ele a beleza e o encantamento da procissão de Nossa Senhora dos Navegantes. O Rio ficava apinhado de barcos e vapores enfeitados que deslizavam graciosos pelas águas do rio. Sumiam na curva da nascente e apareciam logo mais para o delírio, com palmas e vivas, gritadas pelo povo que se aglomerava na margem direita, na entrada do porto. Lembramos dos momentos festivos, e o burburinho buliçoso do povo no embarque e desembarque. Da retirada das entranhas dos vapores as mercadorias, e da cena bucólica das senhoras de vestidos longos e chapéus enfeitados e de seus homens em terno e gravata. A chegada do vapor no porto, anunciada pelo seu silvo rouco, era motivo de festa. A população se enfeitava, e feito criança descia para ver, para saber, para fofocar, e para participar. Ele riu um pouco do jeito dele, matutou por alguns segundos e perguntou depois de um longo suspiro: - Você acredita mesmo que eu posso novamente singrar todos estas milhas de água novamente? O sol já aparecia despertando as borboletas, os entregadores de pão, as fofoqueiras de plantão e tantos outros viventes. O campanário lá mais para o alto tocou o sino do nascer do dia. Não respondi. Apenas fiquei olhando condoído para aquele gigante e confesso que vi lágrimas em profusão nas suas feições. Mudei de direção o meu lacrimejado olhar e olhei saudoso para aquele rio podre, lodoso; Muitas lembranças boas me vieram; Voltei-me então para o Pery, e mais uma vez contemplei condoído o vapor enferrujado; E para não chorar com ele, afastei-me dali no meu passo mole, de um passar incerto que me levou para a realidade nua e crua que me vestia do agora cruelmente. Publicado por Mario dos Santos Lima em 03/07/2012 às 15h15
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. 24/06/2012 19h11
ORGASMO DO JOU DU MOULIN
Você já foi acometido de orgasmo jogando trilha? Se a sua resposta for não, com certeza não viveu, não adentrou por lindos momentos na vida; simplesmente está passando em brancas nuvens por este mundo. Tenho dó de você! Eu joguei muita trilha e meu prazer, fazendo isto, chegou ao alto grau de excitação.. Outro dia perambulando por aí dei de cara com um tabuleiro velho de trilha, ou como se diz em francês: jou du moulin. Era em papelão, mas já com seus cantos carcomidos e suas linhas esmaecidas. Por certo foi muito usado, e tem muitas histórias incrustadas nele. Estava jogado tristemente a um conto da calçada. Peguei-o com cuidado, e assim, em minhas mãos, olhando-o demoradamente, remexeu em mim as boas e doces recordações. Sentei-me a um canto, na calçada, nem sei se de cansado ou hipnotizado pelo achado, mas só sei que meu olhar, num passe de mágica, atravessou o tabuleiro velho de trilha, e foi morar feliz, lá distante, no meu tempo de meninice. Fui parar em outra dimensão. Lá estava eu, moleque, ao lado de minha mãe sempre linda e sorridente como era do feitio dela. Minha mãe era especial. Ela era mestre em estratégia educacional para pirralhos lampinhos. Sabia, como ninguém, com maestria manter a petizada reunida a sua volta. A cena era linda! Chamou cada um para as lições de casa enquanto tricotava uma peça qualquer dizendo: - Quem terminar primeiro vai jogar uma partida de trilha comigo. Jogar trilha com minha mãe era a coisa mais importante, o clímax da alegria para mim e para minha irmã, e eu sempre terminava primeiro. Minha irmã me ajudava no jogo, e depois eu ajudava a minha irmã para tentar vencer a grande mestra da trilha. A luta era inglória, mas a alegria de estar jogando com ela era o que de melhor a gente tinha e usufruía. Enquanto eu fazia a tarefa escolar olhava às vezes para minha mãe a um canto tricotando, e outras para o jogo que me aguardava. O tabuleiro de trilha, riscado com capricho pela minha mãe, estava a postos na mesa com os nove grãos de feijão e de milho esperando pelo grande embate. Eu acho que o tabuleiro se divertia, porque sabia que, por mais que eu ou minha irmã se esforçasse, a grande vencedora seria sempre ela, a polaca linda dos olhos azuis. A gente também sabia que ela poderia ganhar rapidamente, mas amorosamente sempre simulava uma dificuldade, ou colocava de propósito uma pedra em local errado só para a peleja ser mais excitante para nós. Algumas vezes ela perdia, e mesmo sabendo que era de mentira a gente feliz ia dormir. Lá estou eu jogando e vendo minha mãe toda contente por poder estar junto com seus filhos passando conselhos, contando histórias e se divertindo tal qual uma menina. Eu tenho certeza de que, se a trilha fosse um jogo oficial das olimpíadas, a minha mãezinha seria sempre a campeã indiscutivelmente. Parece que estou ouvindo-a dizer quando nos via perder a paciência em jogo: - Meus filhos, o jogo é tal qual a vida; nós temos que ter conhecimento, paciência e persistência nas coisas que fazemos. E ela continuava: - As habilidades, com o passar do tempo, nos dão a competência de ser alguém de sucesso, de fazer acontecer às coisas que almejamos, de jogar bem para vencer ou reconhecer na derrota a competência do outro, para assim melhorar sempre e sempre. Tudo depende exclusivamente de nossa vontade, do nosso querer, de nossa aceitação. O sorriso dela para nós foi sempre como uma benção divina. Vejo-me neste instante jogando com ela, mas... Alguém bate no meu ombro pedindo uma esmola e me trás de volta à realidade. Olhei para ele, quis ficar bravo, mas me contive. Dei a ele a coisa mais preciosa que tinha na mão. Ele pegou o tabuleiro de trilha, olhou com ar de recriminação e dizendo impropérios pinchou-o no chão. Incrédulo pelo ultraje que cometia aquela pobre alma eu pensei: - Por certo este cara nunca teve orgasmos jogando trilha com a mãe dele.
Publicado por Mario dos Santos Lima em 24/06/2012 às 19h11
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