O BÊBADO E O BURACO
Eu acho que o bêbado, de um modo geral tem, ao lado dele, um séquito anjo da guarda zeloso e de muita habilidade. Por certo este anjo deve ter sido um bêbado qualquer, quando em vida encarnado, e quando morreu, Deus arrumou para ele, como função obrigatória um serviço social - a servidão junto aos bêbados vivos - como forma para que ele possa pagar os pecados do tempo em que viveu encharcado. A cidade não tinha calçada e muito menos calçamento nas ruas. O aguaceiro que tinha descido do céu, finalmente deu uma trégua, mas o lamaçal infernal, pegadiço e escorregadio que ficou estava presente para o bailado dos menos avisados. A tarde se mostrava cansada, e perdia o brilho rapidamente desmaiando no horizonte. A conversa na esquina era, entre muitos deliciosos assuntos, com certeza, uma crítica ferrenha ao mandatário da cidade, principalmente porque o filho de uma puta não punha calçada e pavimentava as ruas. Era uma vergonha o estado lastimável do lugarejo. Com a chuva o lamaçal se fazia presente, e com a seca aparecia a poeira castigante. Embora o lamaçal não fosse de todo ruim, visto que se apresentava como um delirante palco de danças e imundície para quem estivesse vendo, proporcionava prazer. Sempre tinha alguém que entrava desavisado em cena, muitas vezes de passos curtos, medrosos, mas que de repente, como se estivesse recebendo uma entidade qualquer, começava a executar uma dança completamente maluca. As pernas se desencontravam, e os braços tentavam a todo custo planar, mas o corpo, num desequilíbrio infame levava pernas e braços a chafurdar no lamaçal. Suspense da platéia no momento da ação, mas muito riso na seqüência ao ouvir os palavrões do inconformado enlameado. De repente paramos o bate papo para observar alguém especial que entrava em cena. Estava a uns cinqüenta metros e vinha em nossa direção. O borracho era de todos conhecido. Vinha milagrosamente equilibrado num zigue zague danado. Dava dois ou três passos para frente e como se perdesse a força voltava um passo para trás. Parava, dizia alguma coisa em alta e descontrolada voz, respirava, reclamava, dizia coisas desconexas e novamente o mesmo processo. A calçada era estreita para a situação dele, mas o equilíbrio era inenarrável. Parecia uma marionete, de pernas e braços moles, mas sempre de pé. Com certeza o anjo dele deveria estar movimentando as cordinhas. Ele se aproximou. Apagamos os cigarros pelo perigo eminente. No zigue zague e no vai vem dos passos parou junto do grupo. Estava tão encharcado que simplesmente não nos enxergou, e ficamos momentaneamente embriagados. Logo a frente tinha uma enorme valeta e um bueiro a céu aberto. Uma prancha de madeira servia de pinguela para atravessar a vala. Olhamos a valeta, olhamos o bêbado e se entreolhamos e sem que ninguém tivesse combinado coisa alguma, partimos para segurar o infeliz. Foi inútil! Lá foi cambaleante o tonel. Parecia ter adivinhado as nossas intenções e por isso ganhou força, e mirando a pinguela passou célere por ela como banana na goela de velho. Em coro dissemos: - O anjo deste filho de uma puta é poderoso mesmo! Ao atravessar a ponte foi parar no meio da rua. Balançou de um lado para outro. Gritou, resmungou, cantou alguma coisa. Ficou como que plantado ali. Eu acho que o anjo dele acabou se borrando todo, e por momentos, pegou algum cantinho para se limpar, e aí então a coisa se desgovernou completamente. Com a ausência momentânea do anjo o corpo ébrio perdeu completamente a noção de direção. Balançou, rodopiou e veio com tudo de ré para o lado da valeta. Um pé conseguiu acertar a prancha, mas outro ficou perdido no espaço, e com isto fez o corpo dar um rodopio no ar, e se projetar de ponta cabeça no bueiro. Petrificados pensamos: - O filho de uma puta deve ter quebrado o pescoço! Momentos se seguiram de suspense, de angustia fúnebre até que fôssemos rápidos para resgatar das profundezas do bueiro o cadáver embebido de cachaça. Quase caímos de costa quando vimos o desgraçado, todo enlameado, surgindo como um monstro fantasmagórico do fundo do buraco, e ao nos avistar dizer de boca mole: - Nunca viram um bêbado cair num buraco? Com certeza o anjo tinha retornado à tempo!
Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 02/12/2012
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