Mario dos Santos Lima

Vivo intensamente o agora

Textos

SORVETE NO CINEMA

"Quem faz o mal feito sempre dá com os burros n’água", minha mãe sempre me dizia.
O tempo passou e tudo mudou!
Hoje nos cinemas tudo é liberado; Come-se pipoca; toma-se suco; dá-se os amassos na menina, e se tiver um pouco mais isolado, lá nas últimas fileiras, por exemplo, pode até dar uma rapidinha, e tudo isto, e mais algumas coisas sem ser molestado por ninguém.
Nos idos bons tempos de garoto que tive nada disto era permitido dentro da sala de espetáculo. A sala estava apenas disponível para assistir o filme em exibição. O maldito lanterninha mantinha-se sempre a postos para tirar o indivíduo que estivesse praticando qualquer coisa irregular. Até parecia que o desgraçado se multiplicava, pois sempre estava em todos os lugares.
A mão da namorada era a coisa mais fácil de se acariciar e segurar, sem muito problema, mas se você quisesse dar uma passadela nas coxas ou no seio dela, isto exigia uma estratégia de ação para lá de perigosa, radical mesmo. Para este procedimento você precisaria estar com a mão boba fazendo a sacanagem, e na vigilância,  tanto seus olhos como os ouvidos teriam que estar atentos no lanterninha. Um olho no gato e outro na lingüiça.
Certa feita fui ao cine ORAS, com os amigos, assistir a um filme qualquer de faroeste, que por sinal acabei não assistindo. O cine ficava no andar de cima. Não havia elevador, mas tinha uma escadaria, que a gente  tinha que vencer, até chegar a ele. Já na sala de projeção, na parte da frente do prédio, havia uma sacada para que o pessoal, antes do início da seção, pudesse conversar, e olhar o movimento da rua.
Estávamos acomodados num bom lugar, aguardando o início da projeção quando o vendedor ambulante lá na rua grita:
- Olha o sorvete! Sorvete gostoso! Quem vai comprar?
O calor estava infernal, e com a tentação gritando lá na rua, baixou o espírito do desejo na turma. Queriam comprar sorvete, mas não queriam perder o lugar. Compra, não compra? O desejo foi maior e resolveu-se comprar, e com isto burlar as normas do cinema.
Das tantas coisas que eram proibidas dentro do cinema o sorvete era um dos itens.
Como fazer? O desejo e o calor juntos nos sufocavam.
Alguém desceria e compraria escondido o sorvete e furtivamente traria para cima ao apagar das luzes.
Perdi a aposta no palitinho, e fui o encarregado do sistema logístico de transportar sete sorvetes escada acima.
Na saída peguei a senha para poder livremente retornar, e me  dirigi incontinente ao carrinho de sorvetes. Como um dos amigos estava na sacada fiscalizando a operação, resolvi, a cada sorvete comprado, lançá-lo até suas mãos. O processo transcorreu-se maravilhosamente bem. Um a um os sorvetes voaram deliciosamente até as mãos dos meus amigos. O meu resolvi transportá-lo cuidadosamente. Era de creme de leite com coco queimado.
Eu vestia uma camisa clara de manga curta e uma calça bege em linho. Coloquei o sorvete no bolso da calça e fui adentrando a casa de espetáculo quando vi meus amigos desesperados descendo a escadaria acompanhados do maldito lanterninha.
Nesta hora senti meu saco encolhido de medo e congelado pelo sorvete .
De imediato percebi que a coisa tinha dado errado. Pensando, ou melhor, sentindo o sorvete procurei me manter calmo, tentando subir a escadaria..
O monstro lanterninha me freia bruscamente a caminhada com sua nojenta mão no meu peito dizendo, quase aos berros,  que viu o vôo dos sorvetes, e que os  tinha confiscado, um por um, e lambendo os dedos completou:
- Você e seus amigos estão expulsos do cinema, e não poderão, por um bom tempo, freqüentá-lo.
Enquanto o lazarento ladrava vomitando impropérios por cima de mim, eu sentia uma coisa fria e visguenta escorrendo e lambendo perna abaixo depois de lambuzar o meu saco. Entrei em desespero, e queria que o maldito terminasse fulminado por um raio salvador. Nada disso aconteceu. Eu até acho que ele sabia, e que viu todo contente o sorvete de creme de leite derretendo no bolso de minha calça.
O filho de uma puta só foi terminar seu vômito de palavras desconexas quinze longos minutos depois.
Com minha calça toda lambuzada como se eu tivesse dado uma bela mijada ou uma ejaculada tamanho elefante, afastei-me rápido,  envergonhado, esgueirando-me por entre as sombras das ruas para fugir dos olhares gozadores.
Puteado enfiei a mão no bolso para tirar o palito que sobrou do sorvete.
Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 31/01/2013
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