Mario dos Santos Lima

Vivo intensamente o agora

Textos

O CRIME DO CARVOEIRO

Que seja um cidadão livre!
Era uma noite abafada no vilarejo, onde as estrelas cintilavam como pequenas faíscas sobre o breu  da floresta. Naquela noite, o silêncio era interrompido pelos passos cambaleantes  de um homem voltando para casa.  O carvoeiro, conhecido por seu jeito rude e pelo cheiro forte do álcool e carvão impregnado na pele, trazia consigo uma alegria embriagada. Ele entoava canções entrecortadas e, aproximou-se do casebre com um sorriso amolecido e os olhos fundos de cansaço.
- Vem cá, mulher, traz uma para mim! Pediu ele, num tom arrastado, mas quase terno de um menino apaixonado, como se o álcool lhe emprestasse uma fragilidade que a sobriedade jamais permitiria.
A mulher hesitou, já acostumada com o temperamento dele quando bebia. Mas, naquele momento, o rosto do carvoeiro parecia diferente, quase inocente. Mas sabia ela que, sob aquela calmaria embriagada, uma tempestade estava prestes a se formar.
Quando o carvoeiro, com seus olhos embaçados, lançou o olhar cheio de desejo para a mulher, o marido, que até então assistia à cena de dentro de casa, sentiu o sangue ferver nas veias . Aquele homem, sujo de carvão e empapado de álcool, estava ali, encostado na soleira , olhando para sua esposa com se ela fosse uma posse sem dono. Cada risada arrastada e cada gesto vacilante do carvoeiro faziam o coração do marido bater mais forte, num misto de raiva e desprezo.
Sem dizer uma palavra, o marido saiu de onde estava, pegando de relance uma ripa da cerca de madeira que estava encostada do lado de fora. Aproximou-se em silencio, com passos firmes, e quando o carvoeiro em seu delírio  embriagado, estendeu a mão para tocar a mulher, ele ergueu a ripa e desfechou um golpe seco na cabeça do homem.
O som foi oco, abafado pela noite. O carvoeiro, atordoado, ainda tentou girar o corpo para entender o que acontecia, mas o segundo golpe o fez desabar no chão, com o olhar vidrado e expressão embriagada agora misturada a um ar de incredulidade.
Morreu ali, na paixão incontida num coração rude e afogado pela bebida.
Morreu sem um grito, morreu sem sofrer anestesiado pelo álcool.
A polícia, no cumprimento de sua missão prendeu o marido que sem resistência deixou-se levar. Sua mulher ainda suplicou para que os cumpridores da lei não o levasse. Foi inútil.
Ainda na cadeia, a mulher do carvoeiro fez uma visita rápida para agradecer.
O marido atônico não entendeu a fala da mulher do carvoeiro:
- Você fez um grande bem para mim! Aquele era um traste bruto amaldiçoado que só vivia para me bater.
A lei tinha que ser cumprida e o júri popular foi montado.
Lá estavam os sete jurados, o juiz bem postado ao centro e no meio da sala o marido sentado esperando a sentença final. O povo, como urubus famintos pela carniça lotou o ambiente.
- Que tenha início a sessão! Ordenou o juiz.
O promotor chamou as testemunhas.
Um silencio sepulcral invadiu o recinto.
O relógio na parede batia seu tique taque na longa espera
Ninguém apareceu.
O juiz encerou, mandando soltar o marido.
A vida prega muitas peças e foi assim que aconteceu com o marido. O Juiz simplesmente soltou o preso, mas não assinou o processo como encerrado.
Assim, mais tarde o marido tornou-se um fugitivo procurado pela justiça
O tempo é a marreta na forja do tempo.
Sai juiz, entra juiz naquele distrito até que, muito tempo depois, diria vinte anos, um juiz chegou e fazendo um limpa nos processos engavetados deu-se de chofre com o caso do marido; pegou o processo assoprou o pó tirando as teias de aranha perguntando aos seus assessores:
- Por onde anda esse infeliz?
- Não sei, respondeu um, não era do meu tempo.
Andando de um lado ao outro, leu demoradamente toda a documentação, colocou o processo na mesa, assentou-se e assinou finalizando a sentença. – Que seja um cidadão livre, ficou escrito acima da assinatura do Juiz.
Até a data de hoje ainda procuram o marido para dar a boa notícia.



Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 10/12/2024
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