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O CRIME DO CARVOEIRO
Que seja um cidadão livre! Era uma noite abafada no vilarejo, onde as estrelas cintilavam como pequenas faíscas sobre o breu da floresta. Naquela noite, o silêncio era interrompido pelos passos cambaleantes de um homem voltando para casa. O carvoeiro, conhecido por seu jeito rude e pelo cheiro forte do álcool e carvão impregnado na pele, trazia consigo uma alegria embriagada. Ele entoava canções entrecortadas e, aproximou-se do casebre com um sorriso amolecido e os olhos fundos de cansaço. - Vem cá, mulher, traz uma para mim! Pediu ele, num tom arrastado, mas quase terno de um menino apaixonado, como se o álcool lhe emprestasse uma fragilidade que a sobriedade jamais permitiria. A mulher hesitou, já acostumada com o temperamento dele quando bebia. Mas, naquele momento, o rosto do carvoeiro parecia diferente, quase inocente. Mas sabia ela que, sob aquela calmaria embriagada, uma tempestade estava prestes a se formar. Quando o carvoeiro, com seus olhos embaçados, lançou o olhar cheio de desejo para a mulher, o marido, que até então assistia à cena de dentro de casa, sentiu o sangue ferver nas veias . Aquele homem, sujo de carvão e empapado de álcool, estava ali, encostado na soleira , olhando para sua esposa com se ela fosse uma posse sem dono. Cada risada arrastada e cada gesto vacilante do carvoeiro faziam o coração do marido bater mais forte, num misto de raiva e desprezo. Sem dizer uma palavra, o marido saiu de onde estava, pegando de relance uma ripa da cerca de madeira que estava encostada do lado de fora. Aproximou-se em silencio, com passos firmes, e quando o carvoeiro em seu delírio embriagado, estendeu a mão para tocar a mulher, ele ergueu a ripa e desfechou um golpe seco na cabeça do homem. O som foi oco, abafado pela noite. O carvoeiro, atordoado, ainda tentou girar o corpo para entender o que acontecia, mas o segundo golpe o fez desabar no chão, com o olhar vidrado e expressão embriagada agora misturada a um ar de incredulidade. Morreu ali, na paixão incontida num coração rude e afogado pela bebida. Morreu sem um grito, morreu sem sofrer anestesiado pelo álcool. A polícia, no cumprimento de sua missão prendeu o marido que sem resistência deixou-se levar. Sua mulher ainda suplicou para que os cumpridores da lei não o levasse. Foi inútil. Ainda na cadeia, a mulher do carvoeiro fez uma visita rápida para agradecer. O marido atônico não entendeu a fala da mulher do carvoeiro: - Você fez um grande bem para mim! Aquele era um traste bruto amaldiçoado que só vivia para me bater. A lei tinha que ser cumprida e o júri popular foi montado. Lá estavam os sete jurados, o juiz bem postado ao centro e no meio da sala o marido sentado esperando a sentença final. O povo, como urubus famintos pela carniça lotou o ambiente. - Que tenha início a sessão! Ordenou o juiz. O promotor chamou as testemunhas. Um silencio sepulcral invadiu o recinto. O relógio na parede batia seu tique taque na longa espera Ninguém apareceu. O juiz encerou, mandando soltar o marido. A vida prega muitas peças e foi assim que aconteceu com o marido. O Juiz simplesmente soltou o preso, mas não assinou o processo como encerrado. Assim, mais tarde o marido tornou-se um fugitivo procurado pela justiça O tempo é a marreta na forja do tempo. Sai juiz, entra juiz naquele distrito até que, muito tempo depois, diria vinte anos, um juiz chegou e fazendo um limpa nos processos engavetados deu-se de chofre com o caso do marido; pegou o processo assoprou o pó tirando as teias de aranha perguntando aos seus assessores: - Por onde anda esse infeliz? - Não sei, respondeu um, não era do meu tempo. Andando de um lado ao outro, leu demoradamente toda a documentação, colocou o processo na mesa, assentou-se e assinou finalizando a sentença. – Que seja um cidadão livre, ficou escrito acima da assinatura do Juiz. Até a data de hoje ainda procuram o marido para dar a boa notícia.
Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 10/12/2024
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